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Tradição e Apocalipse

Pintura: Klosterhof im Schnee (Pátio do claustro na neve), por Karl Friedrich Lessing (1829). Museu Wallraf–Richartz, Colônia, Alemanha

Texto original: Peter Leithart

David Bentley Hart diz muitas coisas perspicazes acerca da tradição e tradicionalismo na seção inicial de Tradition and Apocalypse [Tradição e apocalipse], sua nova obra. O conceito de tradição formulado por John Henry Newman em seu livro Ensaio sobre o desenvolvimento da doutrina cristã (1845) e revisado por Maurice Blondel em seu volume Histoire et dogma [História e dogma], publicado em 1904, é, segundo Hart, “uma ideia muito recente, relativamente falando, e sem raízes muito profundas na tradição da igreja” (p. 2). Na perspectiva de Hart, trata-se também de uma ideia incoerente.

O que Newman inventou foi um conceito teológico de tradição como “uma unidade racional e indivisível que de algum modo subsiste na história e que engloba inumeráveis transformações amplas, conspícuas e substanciais”. Diz-se que a tradição tem uma unidade orgânica e lógica, um “contínuo causal”, no sentido aristotélico: “a unidade essencial de uma ‘substância’ peculiar identificável, com uma enteléquia que lhe é intrínseca e que lhe permite desenvolver e alterar-se ao mesmo tempo que continua sendo inteiramente o que é”. O conceito teológico de tradição entende que esta é uma “tradição viva… moldada por um conteúdo formal, real e exclusivo e por um poder eficiente de desenvolvimento cujos efeitos são determinados por uma finalidade inerente e intencional” (p. 9-10).

Esse conceito é uma espécie de publicidade agressiva; primeiramente em razão da natureza da proposição cristã essencial. Diferentemente de outras religiões que transmitem “certa verdade invariável” de era em era, a fé cristã é “uma história particular e local que intenta desvelar-se como a verdade eterna e universal de todas as coisas”. Os eventos históricos particulares não são meios de desvelar determinado conteúdo atemporal; os eventos são “o conteúdo daquilo que foi desse modo revelado”. De um modo absurdo, “todo o edifício da verdade eterna [equilibra-se] sobre um fundamento minúsculo, tênue e evanescente de um episódio fugazmente temporal”. O cristianismo apreende nossa atenção “principalmente por sua implausibilidade”. As afirmações fundamentais dos cristãos foram sendo elaboradas com “asseverações cada vez a-históricas acerca do ser, ou da natureza ou da supranatureza”; contudo, o núcleo duro da reflexão cristã é “sempre um conjunto de ocorrências que alegadamente ocorreram nesta ou naquela localidade, e de palavras que foram supostamente proferidas por esta ou aquela pessoa” (p. 4-5). O “escândalo da particularidade” não pode ser eliminado.

Tendo em vista a “delicadeza cativante” e a “fragilidade” das declarações cristãs, um conceito teológico de tradição só é credível se apresentar a ascensão e elaboração do cristianismo “como sendo, ao mesmo tempo, a narrativa da preservação ininterrupta de um conteúdo dogmático imutável, racionalmente coerente e sempre implícito e a narrativa do processo dinâmico de uma cristalização, clarificação e descerramento explícitos desse conteúdo em ideias, palavras e práticas” (p. 5). Uma teoria da tradição deve “explicar tudo na crença cristã que não se alterou ao longo do tempo, bem como tudo aquilo que se alterou” (p. 5). Ora, isto – argumenta Hart – é algo que não pode ser feito; e o que Newman em última análise oferece é apenas uma reconstrução histórica do desenvolvimento doutrinal que é concebido como sendo inevitável. É “um truque de ilusionista”. Newman e seus imitadores se esforçam “para impor um consenso e para dissolver discordâncias que haviam permanecido sem serem identificadas ao longo de várias gerações de crentes; e, desse modo, alterar o registro a fim de produzir a impressão de que um armistício assim obtido não era senão a expressão mais pura possível de algo intrepidamente confessado ubique, semper et ab omnibus” (isto é, “em toda parte, sempre e por todos”) (p. 8-9). Mesmo que todos os esforços tenham produzido “um nexo de formulações dogmáticas inovadoras” (p. 9), a noção de tradição engendrou a continuidade ao usar “o conceito narrativo abrangente de que tudo que gradualmente surgiu, ao longo do tempo, nos limites da tradição é uma explanação fiel de verdades presentes de uma forma latente desde o princípio” (p. 12).

Ora, a história é uma grande confusão, inclusive a história da igreja, que não é “o registro de um depósito de crenças que se desvelam inexoravelmente e já totalmente integradas nos momentos primordiais da revelação cristã” (p. 18-19). Os historiadores do cristianismo primitivo estão “conscientes da pluralidade e das contradições das primeiras facções cristãs, bem como dos desvios aparentemente colossais da tradição posterior em relação àquilo que a evidência nos indica acerca daqueles séculos”. Essa rugosidade tem pouco impacto na teologia sistemática ou na dogmática, já que a teologia e os estudos acerca do cristianismo primitivo estão “rigidamente isolados um do outro” (p. 19-20). Pode-se evocar exitosamente a “tradição” apenas se se olhar de soslaio ou mesmo se se desviar o olhar dessa tradição.

Hart acredita que o fracasso de Newman produziu, no entanto, um admirável sucesso: o cardeal efetivamente demoliu o tradicionalismo ao mostrar que a coerência e credibilidade do cristianismo não reside num descerramento constante e suave daquilo que já se fazia presente; antes, tem coerência por causa de sua capacidade de absorver inovações (p. 12). Um tradicionalista não suporta inovações. O tradicionalismo é “movido por uma nostalgia doentia por algo rememorado desde a infância, ou algo quase rememorado a partir de um lugar pouco além do limiar da primeira memória que se tem”. Para os convertidos, em especial, o tradicionalismo torna-se um tipo de ressentimento, “uma feroz aderência a uma versão amplamente simplificada e fabulosa da confissão para a qual o convertido se dirigiu, saindo de outra confissão que o deixou cruelmente desapontado”. Em vez de permitir que a realidade o desencante dessa ilusão, o tradicionalista se aferra a “um quadro da fé… frugalmente estreito e confortavelmente familiar”. Frequentemente, o tradicionalista não mergulha realmente nas profundezas estranhas e misteriosas da história da igreja; antes, apega-se ao passado recente como se fosse a própria tradição” (p. 13-14).

A réplica de Newman certamente incluiria um apelo à orientação que o Espírito dá à igreja, mas não creio que isso salvaria sua teoria. O Espírito é o Espírito da surpresa, que sopra onde quer e estala os vincos do passado para fazer novas coisas. Parece muito improvável que o Espírito do Deus vivo seria tão previsível quanto sugere a teoria da tradição de Newman. O Espírito preserva a igreja na verdade, decerto; mas muitas vezes tem-se a impressão de que o Espírito a deixa livre.

À luz do argumento de Hart, fica claro que o protestantismo é mais suscetível ao tradicionalismo do que o catolicismo ou a ortodoxia. Estando enraizada nos credos ecumênicos, a teologia ortodoxa não tem determinações autorizadas em várias questões e assim é mais livre para absorver inovações. A tradição católica é fixada de modo mais preciso, mas ainda deixa muitas questões em aberto e, nos últimos anos, tem aceitado uma distinção flexível entre a doutrina e sua formulação.

As tradições fundantes do protestantismo têm uma fixidez confessional abrangente que nem o catolicismo nem (especialmente) a ortodoxia possui. Os protestantes têm respostas determinadas para muitas questões teológicas. Há vantagens nessa abrangência. Mas, paradoxalmente, faz com que a tradição teológica que parece a mais maleável seja, na prática, a mais rígida.